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quinta-feira, 7 de outubro de 2010
PASSOS DE GRAÇA
Haroldo Reimer 1
Nossos textos sagrados se tornaram fonte para falar da graça de Deus, que age no mundo e o transforma,
transformando pessoas e relações. A graça se tornou texto. A verdadeira fonte da graça se tornou locus literário, virou
literatura. Essa literatura se transformou, para muitos grupos cristãos, em norma, até em norma normans de todo agir
(cristão) em meio às contradições da vida, do cotidiano e da fé.2
Na Bíblia, esta norma normans de parcela significativa do cristianismo, a figura de Jesus se tornou por excelência a
condensação dessa graça de Deus. Na plenitude dos tempos, Deus manifestou nele a inteireza de sua graça. Este é, em
nossa fé, o condutor e o catalisador da graça divina.
Lições da história das religiões e da fenomenologia da religião nos mostram que o Deus da graça é sempre também, de
alguma forma, o Deus da lei. É o que Rudolf Otto chamava de mysterium fascinans et tremendum.3 A divindade que
se manifesta e é percebida é sempre um amálgama de várias facetas; é maior do que toda experiência; por isso é
transcendente. Nosso Deus, na multiplicidade das experiências de fé que se tornaram texto-literatura, é um “amálgama
de diversas personalidades em um único personagem”4. Mesmo na essência da graça, em Jesus, manifesta-se também
uma duplicidade ou ambigüidade do elemento fascinante e terrorífico. Há que amar e temer...
De muitas formas, mesmo antes de Jesus, os textos sagrados de nossa tradição falam da graça de Deus atuante no
mundo. Mesmo na forma da ‘lei’, as Escrituras revelam a face da graça de Deus. Um texto de ‘lei’, isto é do conjunto
de tradições legais do povo hebreu, Torá, revela muito bem esta simultaneidade (simul) de lei, graça, evangelho,
norma, boa nova:
“Não afligirás o estrangeiro, nem o oprimirás;
pois estrangeiros fostes na terra do Egito.
A nenhuma viúva nem órfão afligireis.
Se algum modo os afligirdes, e eles clamarem a mim,
Eu lhes ouvirei o clamor;
A minha ira se acenderá, e vos matarei à espada;
Vossas mulheres ficarão viúvas, e vossos filhos, órfãos.
Se emprestares dinheiro a meu povo,
Ao pobre que está contigo,
Não te haverás como credor que impõe juros.
Se do teu próximo tomares em penhor a sua veste;
Deverás restituí-la a ele antes do pôr-do-sol,
Porque é com ela que se cobre, é aveste do seu corpo;
Em que se deitaria?
Será, pois, quando clamar a mim, eu o ouvirei,
porque eu sou Deus misericordioso.”
(Êxodo 22,21-24)
O texto faz parte de um conjunto legal maior (Ex 20,22-23-19), tido pela maioria dos pesquisadores do Antigo
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Testamento ou da Bíblia hebraica como o código de leis mais antigo no conjunto destes textos sagrados, variando as
datações entre o século X e VIII aC.5 Sob o guarda-chuva teológico do primeiro mandamento, esta coleção buscaria
abrigar as contradições, as pessoas e os grupos distintos naquela sociedade, aproximando-os sob a noção de aliança
(berit).
Nesta forma de lei no esquema de aliança, a exemplo deste texto, evidencia-se muito bem essa duplicidade,
ambigüidade ou melhor simultaneidade na palavra de graça e de evangelho, isto é ‘boa notícia’. A forma do texto é
‘lei’. O conteúdo, porém, é lei e graça, lei e evangelho. Isso se torna especialmente evidente quando se pergunta pelos
destinatários da graça, por aqueles que são beneficiados pela lei e por aqueles que, como sujeito da lei, são restringidos
na sua ‘liberdade’. O sujeito jurídico do texto é claramente um chefe de alguma unidade familiar-clânica (= tu), que,
no âmbito de sua influência e ingerência social, deveria ‘aplicar’ esta lei, favorecendo as pessoas empobrecidas
mencionadas no texto legal. Para estas personae miserae, a aplicação da lei é ‘boa notícia’, é ‘evangelho’, pois sua
prática implica em um princípio ou passo de inclusão ou manutenção dentro da rede de seguridade social familar-
clânica na sociedade do antigo Israel. Simultaneamente, porém, a lei e sua aplicação resulta em um princípio julgador
sobre a prática social de lideranças sociais, comunitárias e clânicas daquele tempo. Para estes ‘chefes’, a lei e sua
aplicação são ‘lei’ na verdadeira acepção do termo.
A partir deste exemplo particular, é possível fazer duas afirmações importantes: a) em muitos textos sagrados, a fala
sobre a graça de Deus atuante no mundo assume uma simultaneidade de graça e lei; b) no contexto social daquelas
pessoas e comunidades na origem do texto, há movimentos variados de reivindicação, de contestação, de resguardo de
privilégios, enfim de aproximações na forma de acordo, aliança ou, como afirma a língua hebraica, de berit. Para falar
hoje de Deus e de sua graça que transforma o mundo, há que se estar atento para estes dados. A graça que se tornou
texto-literatura-fonte é resultado de passos concretos de pessoas para ensaiarem passos e criarem espaços de graça em
meio à complexidade do cotidiano e das relações sociais. A graça que transforma pode assumir a forma da lei em meio
às contradições sociais, econômicas e políticas dadas dentro um espírito de libertação rumo à liberdade e à dignidade
de vida.
Dentro do Antigo Testamento, ou da Bíblia hebraica, há todo um conjunto de tradições, que adequadamente podem
ser designadas como sendo tradições geradoras de tempos de graça.6 São as chamadas tradições jubilares, nome que
deriva do texto do jubileu do qual se fala em Levítico 25. Em sua grande capacidade de linguagem metafórica, frei
Carlos Mesters afirma que o “jubileu aparece como um rio que atravessa a história do povo de Deus e, com o passar
dos anos, vai crescendo em largura e volume (...) Este rio é formado por muitos afluentes que vêm de regiões e épocas
distantes”7. Pode-se identificar e nomear alguns destes afluentes: o descanso do dia de sábado para o ser humano e os
animais a cada sete dias (Ex 34, 21; 23,12; 20,8-11; Dt 5,12-15; Gn 2,1-3 etc); um descanso para a terra a cada sete
anos (Ex 23,1-11); alforria de pessoas pobres endividadas e escravizadas ao final de seis anos de submissão (Ex
21,2-11; Dt 15,12-18); perdão ou remissão de dívidas ao final do sétimo ano (Dt 15,1-11)8; um jubileu geral a cada
cinqüenta anos (Lv 25); um ano agradável a Deus (Is 61); um jubileu proclamado por Jesus (Lc 4), etc. Especialmente
em Jesus há um resgate e aprofundamento dessas tradições de tempos de graça na história do povo de Deus. O rio se
torna mais profundo e caudaloso!
Essas tradições-texto sobre passos, espaços e tempos de graça na história de nossos antepassados na fé podem ser,
hoje, fontes ou musas inspiradoras para práticas novas e alternativas em meio aos contextos e contradições de nosso
tempo. E assim podem ser lidas e interpretadas. Aqui basta trazer à memória a riqueza de reflexões desencadeadas por
estas tradições dos tempos de graça na virada do século e do milênio, quando internacionalmente havia uma sintonia
com a celebração de um jubileu na tradição católico-romana. Simultaneamente pode-se recordar como este impulso foi
desdobrado para dentro de muitas e diversas ações da campanha “jubileu 2000”, deflagrada e incentivada pelo
Conselho Mundial de Igrejas, e promovida por muitos organismos ecumênicos regionais como o Conselho Nacional de
Igrejas Cristãs, no Brasil. A experiência daqueles ‘tempos bíblicos’ se tornou texto e esse texto é gerador de novas
experiências. Há aí uma circularidade ou espiralidade hermenêutica, ocorrendo quase uma “fusão de horizontes”
dentro da cadeia de tradições.
As tradições e os textos que para nós se tornaram canônicos ou sagrados um dia foram vivência. Foram a experiência
geradora do testemunho, da codificação na forma de fonte literária inspiradora através dos tempos. Este é um dado
que me parece ser importante nunca perder de vista quando se fala, de forma afirmativa ou subjuntiva, de Deus, sua
Palavra e da sua graça que transforma o mundo. Ao repassar, através dos textos, para dentro da história vivida
daqueles tempos realizamos uma sintonia especial. Reatamos com pessoas, grupos, comunidades que ensaiaram passos
para experimentar espaços de graça neste mundo. Seus passos e suas palavras se tornaram sagrados!
Os contextos dos textos bíblicos, especialmente do Antigo Testamento, nem de longe antevêem ou refletem a
complexidade e as contradições próprias de nossos tempos. São textos de realidades pré-modernas, pré-capitalistas.
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Refletem em geral um mundo agrário do Oriente próximo ou do entorno do Mediterrâneo. Sobre a vida de pessoas,
grupos e comunidades em tais contextos incidem formas de tributação, de exploração de produtos e mão de obra.
Desde fins do século VIII aC as demandas próprias de uma economia monetária incipiente se reflete (negativamente)
sobre tais gentes. Empobrecimento, colheitas malogradas, doenças levam pessoas a buscar auxílio na rede de
solidariedade das famílias e dos clãs, procurando incrementar tradições como a lei do resgate, a lei do levirato, etc.
Tais redes, muitas vezes, já estão furadas pela adesão às novas regras econômicas, levando pessoas empobrecidas a
buscar empréstimos que servem de âncora para novos movimentos exploratórios, recheados de ‘maracutaias’, como o
denunciam alguns profetas (Am 8,4-7; Is 3,12-15; 10,1-3 etc).9
O horizonte de mundo daqueles contextos parece ser relativamente pequeno dentro daquele mundo agrário com
poucos e ensaios urbanos, Mas já há aí uma complexidade própria! Em meio a tais contradições se dá o movimento de
pessoas ensaiando o sentido daquele que hoje chamamos de graça e cuja ação tão intensamente desejamos para dentro
de nosso próprio mundo: Deus, em tua graça transforma nosso mundo! O exercício, os passos de gente reivindicando,
de gente buscando saídas, de gente negociando, de outros concedendo vai gerando experiências, que se tornam
referências, que viram acordos, que se tornam textos. Tais textos nos inspiram hoje não só a olhar para a graça do
Deus transcendente, mas para a graça a ser construída de forma conjunta em nosso tempo.
Além do exposto, um exemplo no qual toda a problemática pode muito bem ser exemplificada é a questão do sábado.
O shabbat é, por excelência o tempo e espaço para o gozo da graça em meio ao mundo do trabalho. Os textos bíblicos
mais antigos relativos ao sábado falam dele como uma ruptura do intenso ritmo de trabalho. No dia de sábado deve-se
fazer uma pausa, interromper os trabalhos, mesmo no maior ritmo da produção (Ex 34,21). No dia de sábado deve
haver uma possibilidade de um ócio geral para todos os integrantes da unidade de produção e reprodução (Ex
23,10-11; 20,8-11; Dt 5,12-15). O ápice desse tipo de projeção e representação da graça é alcançada no relato da
criação em Gênesis 1,1-2,3.10 Após haver criado todo o cosmo em seis dias, no sétimo dia Deus descansou de toda
obra que fizera. Este texto em linguagem mítica convida os ouvintes, leitores, enfim todas as pessoas, que se põem no
seguimento a esta tradição a fazerem uma imitatio dei, realizando um tempo de pausa e de graça em meio ao ritmo
intenso da vida. Isso será como uma marca distintiva da fé em Deus, que, em alguns momentos na tradição do povo
hebreu levou a radicalizações. Contudo, a reinterpretação dada por Jesus de Nazaré conduziu o sentido do sábado
novamente à sua originalidade: o sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado (M 2,27-28).
Assim, o tempo de graça do shabbat poderá ser uma antecipação da graça de Deus atuante e operante neste mundo. É
um tempo de sonho, de utopia, de suspiro da criatura oprimida em busca de libertação e liberdade. Bem já dizia o
judeu Franz Rosenzweig que “todo sábado humano torna-se sonho da plenitude”. Também para o próprio Lutero, o
ócio é culto verdadeiro a Deus. Cabe a nós, em nossos tempos e em nossas vicissitudes e contradições, dar os passos
para o estabelecimento de espaços de graça em nosso mundo. Assim poderemos mais plenamente dizer: Deus, em tua
graça, transforma o nosso mundo!
[Texto publicado em: PEREIRA, Nancy Cardoso et alii (orgs.). A graça do mundo transforma Deus. Diálogos latino-
americanos com a IX Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas. Porto Alegre: Editora Universitária Metodista,
2006, p. 105-111]
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