E a América Latina fez ouvir a sua voz...
Uma breve análise histórica dos movimentos de missão e sua repercussão para a teologia latino-americana
O Congresso Internacional de Evangelização Mundial realizado em Lausanne, Suíça em 1974 representou um marco para o desenvolvimento da Teologia da Missão no mundo, principalmente na América Latina e a partir dela. As discussões sobre a evangelização e a responsabilidade social da Igreja, contribuíram para o processo de libertação e de construção da identidade teológica em relação aos modelos eclesiais-missionários, construídos e adequados para outras realidades sociais, econômicas, políticas e culturais, diferentes da realidade latino-americana, dando início ao que se pode chamar hoje de Teologia Evangélica da Missão Latino-americana, ou como também é denominada: Teologia da Missão Integral.
Os eventos evangélicos na América Latina, que antecederam Lausanne, como o CLADE I (1969) e a constituição da Fraternidade Teológica Latino-americana (1970), foram fundamentais para se obter uma representação significativa da América Latina naquele congresso através de teólogos como Orlando Costas, Samuel Escobar e René Padilla.
Mas, como todos os eventos históricos que provocam mudanças em grandes escalas não são situações isoladas, mas podem ser comparadas a grandes cachoeiras que existem em função das águas que nelas desembocam, bem como elas não se encerram em si mesmas, mas impulsionam um novo fluxo; eles foram resultados de vários movimentos e geraram outros a fim de não somente promover sua continuidade, mas sua atualidade.
Lausanne 1974 foi a cachoeira gerada por águas vindas de várias situações históricas e de várias partes do mundo, inclusive da América Latina, e lá, ao se encontrarem, caíram com a força inevitável da história, gerando um novo fluxo com grandes repercussões para a América Latina. Dentre as situações históricas que antecederam e resultaram no sentimento e no movimento de Lausanne podem-se apresentar rapidamente algumas, a fim de se obter uma visão de conjunto da questão.
1) REFORMA PROTESTANTE
Movimento que aconteceu no séc. XVI, como desfecho de várias outras manifestações históricas em reação ao imperialismo Católico Romano e impulsionado pelo espírito do Renascimento. Embora não apresentasse claramente uma intenção evangelizadora dos povos chamados “pagãos”, o que é motivo de muitas críticas, em seu conteúdo teológico, e à luz dos atuais conceitos de missão, foi caracteristicamente missionário. Seria impróprio afirmar que um movimento que colocou a Bíblia nas mãos do povo em sua própria língua, defendeu a liberdade de interpretação das Escrituras, ensinou o livre acesso a Deus através de Jesus Cristo e possibilitou a vivência espontânea da fé, não foi missionário.
Não desconsiderando as implicações históricas do movimento e seus desdobramentos, foi na Reforma Protestante que a Missão apresentou sua face mais libertadora, pois repercutiu diretamente nos vários aspectos da vida humana, ou seja: religiosa, social, econômica, política, cultural, etc.
PIETISMO–
Movimento de dentro da Reforma, iniciado no final do séc. XVII em reação à frieza do ortodoxismo luterano em vigor na época, e inaugurador das atividades missionárias transculturais protestantes. Caracterizou-se pela ênfase na simplicidade e na disciplina da fé e vida cristã, na experiência pessoal de conversão, santificação e envolvimento missionário. Esses elementos passaram a motivar o empreendimento protestante-evangélico entre os povos não cristãos.
MORAVIANISMO –
Surgiu dentro do pietismo e marcou a atividade missionária protestante com um intenso envolvimento na evangelização dos povos, acrescentando ao modelo pietista da ênfase na experiência de fé, o desprendimento e a dedicação sacrificial na tarefa missionária. Destacou-se por apontar um modelo de missão não somente para os pobres, mas a partir dos pobres.
PURITANISMO-
Movimento de dentro da Reforma, mais precisamente do calvinismo, ocorrido na Inglaterra no séc. XVII, caracterizado pela exigência de um alto padrão de moralidade pessoal e social dos cristãos da época, através da imposição legal e religiosa possibilitada pela tomada do governo. Seu envolvimento missionário se deu dentro do contexto da expansão colonialista protestante européia.
AVIVAMENTO INGLÊS E METODISMO–
Movimento que aconteceu no séc. XVIII dentro do puritanismo. Teve como líder proeminente João Wesley, que sofreu fortes influências do pietismo alemão, mas teologicamente era de origem calvinista. Destacou-se pelas ênfases na disciplina religiosa, experiência carismática, envolvimento dos cristãos na sociedade e de pregadores leigos na tarefa missionária e pastoral. O modelo missionário por eles praticado enfatizava a conversão pessoal e o envolvimento social concomitante desta. Este movimento deu origem ao chamado evangelicalismo.
AVIVAMENTO NORTE-AMERICANO–
A América do Norte foi colonizada de forma emigratória por puritanos ingleses, que visavam construir naquelas terras um novo mundo, uma “Nova Inglaterra”, sob sentimento de povo escolhido aos moldes do Israel bíblico, neste caso, como um “Novo Israel”.
Os avivamentos ocorridos na América do Norte se deram nesse meio protestante de origem puritana e geraram vários esforços missionários, inclusive para a América Latina.
O primeiro avivamento - ocorreu em meios calvinistas, mas com grande repercussão para o meio Batista e Metodista por enfatizar a conversão pessoal. Foram seus protagonistas Jonathan Edwards e Jorge Whitefield. O movimento enfatizava a experiência pessoal de conversão, dedicação à Escritura e a importância dos constantes “ventos de avivamento”, marcando períodos da história da Igreja.
O segundo avivamento - teve início no final do séc. XVIII. Predominou nos ambientes acadêmicos e caracterizou-se pelo intenso envolvimento missionário de estudantes entre povos considerados ainda não alcançados pela fé cristã evangélica, principalmente no terceiro mundo. Além do impulso do avivamento, também foram movidos pelo sentimento do chamado “Destino Manifesto”, que conforme o Prof. Antonio Gouvêa de Mendonça se deu sob bases teológicas milenaristas da construção de uma sociedade ideal, conforme ele “Uma civilização cristã segundo o modelo protestante”[1][1].
MOVIMENTO EVANGÉLICO OU EVANGELICAL-
Originado nos avivamentos, primeiramente na Inglaterra e em seguida na América do Norte, a partir da configuração teológico-missionária destes. Contou com representantes das diversas denominações que compartilhavam dos princípios que marcaram os avivamentos, entre eles: centralidade das Escrituras, conversão pessoal, envolvimento social e evangelização dos povos. Mas, as divergências teológicas dentro do movimento evangélico, principalmente nos assuntos escatológicos, fizeram surgir no início do século 20 três segmentos que distinguiam entre si e, de alguma forma, representam a igreja evangélica até os dias de hoje, que são: Movimento Ecumênico, Movimento Fundamentalista e Movimento Evangélico Radical ou Crítico
A discussão missionária subseqüente na América Latina e a atual Teologia de Missão são devedoras desses movimentos, bem como de teologias produzidas na Europa, como Teologia Secular, Teologia Política e Teologia da Esperança, mas que não serão tratados neste texto por não ser a proposta desta produção.
MOVIMENTOS EVANGÉLICOS DE MISSÃO:
1) ECUMÊNICO
Com ênfase na renovação social e no ecumenismo, teve origem no Movimento Estudantil que dinamizou a atividade evangelizadora-missionária no séc. XIX, sob a liderança de John R. Mott, organizador e presidente da Conferência Missionária de Edimburgo, em 1910, de caráter interdenominacional e realizada para discutir os rumos estratégicos da evangelização mundial. Em 1921 foi criado o COMIN – Conselho Missionário Internacional, a fim de dar continuidade às discussões de Edimburgo e organizar novas conferências, que aconteceram em 1928 em Jerusalém, 1938 em Tambaram, 1047 em Whitby, 1952 em Willingen, 1958 em Achimota e 1961 em Nova Délhi; vindo em 1961 a integrar-se ao CMI-Conselho Mundial de Igrejas, constituindo-se em seu braço missionário.
As discussões das Conferências que sucederam a Edimburgo e das posteriores à incorporação do COMIN ao CMI, apresentarem ênfase nas questões sociais e um ecumenismo mais amplo. Tal fato resultou na insatisfação da ala evangelical mais conservadora, que se afastou do movimento e desenvolveu suas próprias discussões a respeito da missão evangelizadora da Igreja em nova série de congressos e conferências.
2) MOVIMENTO FUNDAMENTALISTA –
Apresenta ênfase na ortodoxia confessional e na evangelização nos moldes da prática missionária do séc. XIX, a partir da compreensão da missão exclusivamente como a tarefa de evangelização a ser realizada pela Igreja. O discurso missionário, neste caso, se dá em vista de uma perspectiva mais fatalista da história humana. Nesta perspectiva o evangelho salva o pecador do mundo, não para a transformação deste.
3) EVANGÉLICO RADICAL OU CRÍTICO
Este termo visa a designar aqueles evangélicos que afirmam a autoridade e prioridade das Escrituras, a importância da conversão, a eminente volta de Cristo e outros pontos teológicos que caracterizam o evangelicalismo histórico. Também afirmam a necessidade de envolvimento e transformação social e, para isso, a ação socialmente libertadora do evangelho.
Embora o movimento evangelical de missão do séc. XX tem sua origem também na Conferência de Edimburgo (1910), foi em 1966 que realizou o Congresso sobre Missão Mundial na cidade de Wheaton, numa perspectiva evangelical mais conservadora e, de certa forma, em reação aos desdobramentos do movimento ecumênico de missão. No mesmo ano foi realizado em Berlim o Congresso Mundial de Evangelização, fundamental para o desenvolvimento do movimento de missão evangelical. Em Berlim decidiu-se pela realização de congressos continentais para discutirem os rumos da evangelização, o que permitiu que o movimento chegasse a América Latina e desse origem ao primeiro congresso de evangelização: CLADE – Congresso Latino Americano de Evangelização.
CLADE I – Organizado em 1969, na cidade de Bogotá, pela Associação Evangelística Billy Graham. Contou com a presença de representantes do fundamentalismo evangélico norte-americano defensores de uma evangelização tecnicista com vistas ao crescimento numérico das igrejas. Em contrapartida, o evento contou com a presença de teólogos latino-americanos que fez demonstrar que nessa região já florescia uma teologia da missão de nuances nativas, e que aliava o pensar teológico e a evangelização aos dilemas sociais do povo latino-americano.
FRATERNIDADE TEOLÓGICA LATINO-AMERICANA – Como afirma Longuini Neto ela nasceu, de certa forma, nos corredores do CLADE I[2][2], foi organizada formalmente em 1970 em uma consulta realizada em Cochabamba. Tornou-se elemento fundamental para o estabelecimento de uma liderança regional e de origem latino-americana para dar continuidade às discussões sobre a missão, não mais somente em nossas terras, mas a partir da América Latina.
CONGRESSO INTERNANCIONAL DE EVANGELIZAÇÃO – LAUSANNE
Realizado em 1974, na cidade de Lausanne – Suíça, organizado pela Associação Evangelística Billy Graham, de caráter interdenominacional e mundial, a fim de reunir representantes evangélicos do mundo todo para discutirem a evangelização. Os teólogos Samuel Escobar e René Padilla foram convidados para serem os palestrantes representantes da América Latina. Suas palestras foram: Samuel Escobar sobre A Evangelização e a Busca de Liberdade, de Justiça e de Realização pelo Homem. René Padilla discursou sobre A Evangelização e o Mundo.
A conseqüência de Lausanne para a América Latina foi maior do que a abertura possibilitada pelo Pacto para a evangelização integral, pois estimulou segmentos da Igreja para uma teologia com contorno regional e preocupada em responder as questões do contexto sócio-cultural latino-americano. Se tal desfecho fazia parte ou não da agenda formal do congresso é de menos importância, mas a América Latina se fez presente e certamente fez ouvir a sua voz, não mais somente como campo de missão, mas com uma compreensão própria da sua tarefa missionária.
CLADE II – Realizado em 1979 na cidade de Lima – Peru. Desta vez, o congresso foi convocado e dirigido pela FTL o que revela o avanço do movimento evangélico Latino-americano. Teve como finalidade enfatizar e contextualizar para a América Latina o Pacto de Lausanne e prosseguir as discussões em torno da Teologia da Missão Integral.
CBE I – O Congresso Brasileiro de Evangelização foi realizado na cidade de Belo Horizonte, no ano de 1983, com a finalidade de contextualizar o Pacto de Lausanne para o Brasil. Tratou da evangelização em suas diversas relações: eclesial, sócio- política, cultural, etc. Foi um marco nas discussões sobre a evangelização nas terras brasileiras e possibilitou, de uma forma mais direta, o contanto com esse movimento evangélico de missão próprio da América Latina.
CONGRESSO INTERNACIONAL DE EVANGELIZAÇÃO II
Realizado na cidade de Manila – Filipinas, no ano de 1989. Organizado pela CLEM – Comissão de Lausanne para a Evangelização Mundial. Com aparente intenção de retorno à ênfase na evangelização nos moldes do fundamentalismo norte-americano. Infelizmente, não houve a participação de teólogos latino-americanos na agenda do evento. O congresso de Manilla teve sua importância no desenvolvimento do pensamento sobre a evangelização, mas certamente não alcançou o brilhantismo do Congresso de Lausanne que continuou sendo, através de seu pacto, o marco para o movimento evangélico latino-americano.
CLADE III – Realizado em 1992 na cidade de Quito – Equador, também organizado pela FTL, procurou continuar a discussão sobre a Teologia da Missão Integral na América Latina à luz do Pacto de Lausanne, sempre considerando os desafios sócio-eclesiais emergentes em nossa região.
CLADE IV – Aconteceu no ano 2000, também na cidade de Quito no Equador, e ocupou-se em discutir a relação da missão da igreja evangélica na América Latina com as Escrituras, testemunho cristão, liturgia, grupos sociais, etc.
CBE II – Realizado na cidade de Belo Horizonte em 2003. Organizado por representantes da FTL-Setor Brasil, Mocidade para Cristo e Aliança Bíblica Universitária. Embora com pretensão de ser uma atualização de Lausanne para os novos tempos da Igreja brasileira, fez demonstrar a atual necessidade de envolvimento das igrejas locais e sua liderança pastoral na discussão sobre a Teologia da Missão, pois é Missão da Igreja e não pode mais ser realizada por grupos que se organizam a parte desta, mas deve ser feita a partir “de dentro” da Igreja Latino-americana em suas expressões locais.
Todos estes eventos são decorrentes de um movimento maior denominado de Movimento de Missão, que repercutiu na América Latina e dela obteve como resposta uma forma de teologia que, nascida em solo latino-americano, pretende considerar as perguntas que surgem da experiência sócio-histórica deste povo. Esta teologia que parte da compreensão do envio da Igreja do Senhor Jesus ao mundo, para uma ação missionária integral. Esta resposta teológica é o meio pelo qual, mais uma vez, a América Latina faz ouvir a sua voz.
BIBLIOGRAFIA
BOSCH, David J. Missão Transformadora – Mudanças de Paradigma da Teologia da Missão, São Leopoldo: Sinodal, 2002.
ESCOBAR. Samuel. La Fé Evangélica y las Teologías de la Liberación. El Paso: Casa Bautista de Publicaciones, 1987.
______. Desafios da Igreja na América Latina. Viçosa: Ultimato, 1997.
GRAHAM, Billy. A Missão da Igreja no Mundo de Hoje, São Paulo: ABU, 2 ed., 1984.
PADILLA, C. René. 25 Anos de Teologia Evangélica Latino-americana. Buenos Aires: Fraternidad Teologica Latinoamericana, 1995.
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. O Celeste Porvir, São Paulo: ASTE, 1995.
NEILL, Stephen. História das Missões. São Paulo: Vida Nova, 1989.
NETO, Luís Longuine. O Novo Rosto da Missão, Viçosa: Ultimato.
SCHERER, James A. Evangelho, Igreja e Reino, São Leopoldo: Sinodal/EST, 1991.
STOTT, John R.W. Evangelização e Responsabilidade Social. São Paulo: ABU, 1980.
Regina de Cássia Fernandes Sanches
Mestre em Missiologia – FTSA/Londrina, Mestre em Teologia e Práxis – ISI/FAJE, professora de Teologia Latino-americana da FATE-BH.